segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Farias Brito: filósofo da liberdade

Luiz Alberto Cerqueira (Coordenador do CEFIB) 
Leonardo Almada (Doutorando do PPGF junto ao CEFIB)
  

Homenagem a Farias Brito (1862-1917), aos 90 anos de sua morte,
em presença de sua neta Sulamita Castro Azevedo e Silva
e demais descendentes.
IFCS, 25/09/2007



Notas ao fim do texto.
Para uma biografia de Farias Brito, consultar Jônatas Serrano: 



 
Farias Brito pertence a uma estirpe de filósofos cuja preocupação essencial se constitui no problema mesmo da filosofia: o conhecimento de si como espírito ou consciência. O que queremos dizer com isto? Primeiramente, que a unidade e a identidade de sua obra filosófica, que compreende seis livros publicados, giram em torno à necessidade desse conhecimento. Esta é uma evidência que se nos impõe desde a primeira obra filosófica, de 1895, onde ele faz uma declaração explícita de intenções: “quero, numa palavra, interrogar os segredos da consciência de modo a explicar a cada um a necessidade em que está de compreender o papel que representa no mundo [...] quero estudar esta ciência incomparável de que falava Sócrates”[1]. Tal orientação se renovará sempre, em momentos marcantes da obra. Eis como ele conclui o seu texto mais famoso — O mundo interior: “de toda a forma, a verdade fundamental, a verdade que é o centro de todo o trabalho do espírito e o princípio mesmo do método, é ainda e será talvez sempre, a que se encerra no velho preceito socrático: Conhece-te a ti mesmo”. Eis ainda como ele se apresenta no terceiro parágrafo de seu último texto, apenas iniciado — Ensaio sobre o conhecimento: “E comecei interrogando e é interrogando que termino [...] Que é tudo isto que me cerca? Que sou eu mesmo que trabalho por conhecer a verdade?”. Tal instância do conhecimento de si, entretanto, não é exclusividade de seu pensamento, senão da própria filosofia. E este segundo ponto a ressaltar nos revela a magnitude de seu pensamento: somente pela instância do conhecimento de si o indivíduo pode conceber a filosofia em sua historicidade, desde o momento socrático[2] ao cogito cartesiano[3], passando por Agostinho, na medida em que este distinguiu o ato de pensar, o “eu penso”, como atributo exclusivo do espírito, contrariamente ao corpo, e por isso mesmo como função inerente ou inata ao espírito[4]. Portanto, é assim, pelo sentido da filosofia como uma disciplina cujo objeto é em cada um a consideração do espírito em separado do próprio corpo, como princípio de conhecimento e ação moral, que devemos situar Farias Brito tanto no âmbito da história da filosofia ocidental quanto em relação ao nascimento da filosofia no Brasil. Sua apresentação, como filósofo brasileiro em face da possibilidade mesma de uma filosofia brasileira, pressupõe, sem dúvida, uma trajetória desse sentido da filosofia no Brasil.

Para Farias Brito, há uma relação originária entre o “conhece-te a ti mesmo” e a idéia de ciência. Tal relação configura o ideal grego do saber como um conhecimento virtuoso, de caráter universal e objetivo, de maneira que o valor do saber universal e objetivo adquirido como uma experiência atual implica o conhecimento de si para o efeito de uso teórico da razão. Consequentemente, o conhecimento de si tem um caráter ontológico: não só é anterior como serve de fundamento à ciência. Assim sendo, do ponto de vista da historicidade da ciência, a irrupção do método científico introduzido pelos físicos modernos no século XVII deve ser considerada um efeito remoto daquele ideal grego de ciência, e, por isso mesmo, uma vez demarcado o caminho seguro da ciência, ela se constitui em condição para o ensino filosófico, até então historicamente subordinado às questões teológicas. Kant foi o intérprete desta condicionalidade histórica entre a ciência e a filosofia, ao estabelecer, na Crítica da razão pura, que o uso metafísico da razão, no qual se transcende os limites da experiência empírica, não carece de qualquer ajuda da razão teórica, mas tem de assegurar-se contra a reação desta, para não entrar em contradição consigo mesma. E é deste modo que se justificam as seguintes afirmações britianas, observando-se que, nas primeiras décadas do século XX, o ensino filosófico no Brasil ainda dependia dos seminários religiosos para sobreviver[5]:

"A ciência, que é produto da filosofia, se faz, por sua vez, condição da filosofia" (A base física do espírito, Introdução, III, VII).

"Cada filósofo sofre a influência da ciência especial a cuja inspiração preponderante obedece, mas sempre que se entrega à especulação filosófica propriamente dita, o que tem em vista e o que procura é interpretar o espírito" (O mundo interior, §5º).

Cabe advertir, entretanto, que esta expressão do sentido da filosofia em função da ciência não configura absolutamente uma exigência de aplicação do método da ciência à instância do conhecimento filosófico, senão ao uso meramente contemplativo da razão em termos do que historicamente se denominou “dogmatismo da razão”. No Brasil do século XIX, após dois séculos de ensino filosófico subordinado à teologia, era da maior importância compreender a diferença entre conhecimento e fé. Mas ao posicionar-se radicalmente contra a pretensão dos naturalistas e positivistas de estender o método das “ciências da natureza” ao conhecimento do psíquico, Farias Brito nada mais fez do que levar às últimas conseqüências a seguinte tese kantiana: que somente pela consideração da vontade como pertencente a uma coisa em si, isto é, a alma humana como sendo não sujeita às leis da natureza, podemos compreender em que sentido a liberdade é princípio de ação moral[6].

Quando Farias Brito, imprimindo uma significação positiva à esfera da “coisa em si” kantiana, apóia-se na possibilidade metafísica de a razão transcender os limites da experiência sem entrar em contradição consigo mesma, o que sem dúvida está em jogo é a ação moral em sua intencionalidade, própria de um espírito que é a um só tempo livre e criador. A compreensão do espírito a partir de seu “poder agente e real, vivo e concreto, que não somente sofre a ação dos elementos exteriores, como ao mesmo tempo é capaz de agir sobre eles” define a vida do espírito do ponto de vista dela mesma, considerada em si, e jamais como um fenômeno físico ou mesmo psicofísico (O mundo interior, §3).

Nesse sentido, é o espírito um princípio vivo de ação, capaz não só de exercer seu domínio sobre a natureza, sobre as coisas, mas sobretudo capaz de exercer o governo de si mesmo, com liberdade. É o espírito a força criadora por cujas mãos tanto pode o homem vivenciar o espanto e admitir a douta ignorância como princípio de conhecimento quanto pode criar alguma coisa de novo e interferir na realidade por meio das maravilhas da arte. Daí que se vê a necessidade de reverter a concepção positivista que afirmava ser a psicologia a última das ciências, tanto por sua aparição tardia quanto por ser ainda uma ciência imperfeita e incipiente. A posição de Farias Brito, portanto, aponta para a idéia de psicologia como a primeira das ciências: por um lado, pelo fato de o espírito ser o princípio dos princípios, a verdade das verdades, o fundamento de toda realidade e a base de todo conhecimento; por outro, por consistir em uma disciplina a qual existe desde que apareceu no mundo um ser pensante e livre, porque “capaz de refletir sobre si mesmo e de agir determinado por idéias” (ibidem). A mesma razão pela qual atribuem o retardo à psicologia é o que justifica a célebre afirmação de Farias Brito de que a mais velha das ciências tem seu mérito exatamente em função do fato de que seu objeto, o espírito livre, não sujeito às leis da natureza, se encontra para além do que alcançam os métodos das ciências da natureza.

É o método próprio da filosofia que, de acordo com Farias Brito, nos dá o exemplo mais vivo de uma psicologia que “não se aprende nos livros, mas na luta mesma da vida: é uma ciência que, por assim dizer, não se aprende, mas vive-se; ciência que faz parte orgânica daquele que a possui, e em que o objeto do conhecimento é consubstancial com o sujeito” (O mundo interior, § 4). A preeminência de tal método justifica-se, pois, no poder que tem de levar em consideração o “ser consciente, o ser que é o princípio dos fenômenos psíquicos” e que, assim, é por si “misterioso e estranho”, de tal sorte que não pode ser realmente contemplado nas mesmas condições em que são os fenômenos da realidade exterior, sob a égide do método matemático-experimental. Com efeito, para além da legimitidade inerente ao poder que as ciências naturais têm de fazer previsões de qualquer fato na ordem física, a introspecção, enquanto o método próprio da psicologia, apreende o espírito para o qual é impossível qualquer previsibilidade segura e cujo fato decisivo — mediante o qual podemos concebê-lo em separado da matéria — é a liberdade. Nesse sentido, é a consideração do espírito em separado da matéria o que faz da liberdade o fato mais claro do espírito humano e, assim, o que propicia a visão do espírito enquanto energia viva e criadora. E é exatamente por isso que se impõe o método introspectivo como método filosófico, para além da constatação de que o eu vive à sua própria sombra: “a introspecção revela a causalidade mecânica no mundo à sombra da causalidade psíquica”, de modo que, assim, “não só completa-se a revolução copernicana na metafísica, enunciada por Kant, como também resgata-se o sentido de totalidade do real como objeto da filosofia enquanto tarefa infinita” (CERQUEIRA, 2003a, p.37). Farias Brito, portanto, ao enunciar uma compreensão de filosofia como atividade permanente do espírito e ao afirmar a necessidade de reinserir a filosofia no ideal socrático do “Conhece-te a ti mesmo”, torna-se um ponto de referência a partir do qual resgatamos a experiência histórica brasileira de autoconsciência, por um lado, como também determina, mediante o estabelecimento da ciência do espírito como princípio e fim da filosofia, a possibilidade de um acesso à essência da modernidade (CERQUEIRA, 2006). Por um lado, portanto, é em Farias Brito que vislumbramos a maturidade de um movimento cujo início remonta à concepção de Vieira quanto à conversão como princípio da consciência de si, passando pela necessidade do conhecimento de si em Magalhães e pela teoria da cultura como contraposição à natureza, tal qual se verifica em Tobias Barreto. Por outro lado, a perspectiva de Farias Brito aponta, de modo independente, para a mentalidade moderna, isto é, para o que propiciou o cogito cartesiano quanto à necessidade do conhecimento de si como inteligência e liberdade, enquanto a essência da filosofia:

"Farias Brito representa o coroamento de uma singular experiência histórica de pensar correspondente ao nascimento da filosofia no Brasil. Em sua obra distingue-se claramente um sentido de unidade em torno ao problema originário que perpassa toda a cultura brasileira desde a vigência do aristotelismo português no ensino filosófico. Trata-se do problema acerca da necessidade do conhecimento de si. Seu aprofundamento desse estudo na filosofia moderna, especialmente em torno à questão da coisa-em-si, e sua proposta de uma psicologia transcendente, não só incorporam e ampliam as teses apresentadas pelos seus antecessores no Brasil, especialmente Antônio Vieira, Gonçalves de Magalhães e Tobias Barreto, como colocam a filosofia brasileira na vanguarda do pensamento filosófico oitocentista em sua aspiração a uma ciência do espírito não limitada ao método das ciências naturais" (ibidem).

Notas
[1] Finalidade do mundo I: Introdução, VI.
[2] Sócrates é o primeiro a distinguir a necessidade de um conhecimento específico do espírito, enquanto “arte” exclusiva, como sendo esta a condição de um conhecimento prévio da nossa própria possibilidade de conhecer objetivamente na experiência, a começar pela própria existência (Platão, Alcibíades, ou Da natureza do homem: 128 d / 131 c).
[3] No Prefácio de suas Meditações, Descartes afirma que “no que concerne à alma, embora muitos tenham acreditado que não é fácil conhecer-lhe a natureza [...] ousei efetivamente empreendê-lo neste escrito”.
[4]. Tal é o inatismo das idéias em Agostinho, ressaltando-se uma segunda presença das coisas ao espírito — a representação —, já agora inteiramente liberta, pelo pensamento, das determinações mecânicas com que as mesmas coisas primeiramente se nos tornam presentes através dos sentidos do corpo: a idéia das coisas como representação é inata na medida em que se distingue como fenômeno estritamente relativo ao espírito, inteiramente psíquico e absolutamente independente dos sentidos do corpo, como, por exemplo, a idéia de Deus (Cf. Agostinho, Confissões: X, X-XI). É neste sentido que Descartes, respondendo às objeções de Hobbes, assim se exprime: “Quando digo que qualquer idéia é inata em relação a nós, não entendo que ela se apresente sempre ao nosso espírito, pois assim nenhuma certamente é inata. Entendo tão somente que temos em nós mesmos a faculdade de fazê-la apresentar-se” (Objectiones tertiae: X (AT: VII, 189); Troisièmes objections et réponses: X (ALQ: II, 622)).
[5] Dentre as principais novidades da reforma da educação promovida pela Constituição republicana de 1891 constavam, além da laicidade do ensino público, a supressão da disciplina Filosofia.
[6] Cf. Kant, Crítica da razão pura, B xxviii.

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