segunda-feira, 24 de setembro de 2007

A Liberdade como Princípio em Pedro da Fonseca - Conferência Farias Brito

António Manuel Martins (Universidade de Coimbra)

" ... es gibt zwei Labyrinthe für den menschlichen Geist: das eine betrifft die Zusammensetzung des Kontinuums, das andere das Wesen der Freiheit. Das eine wie das andere aber entspringt aus derselben Quelle, nämlich aus dem Begriff des Unendlichen ...[Denn] man muss vor allem wissen, dass alle Geschöpfe einen Stempel der göttlichen Unendlichkeit in sich tragen, und dass dies der Ursprung der vielen wundersamen Dinge ist, die den menschlichen Geist in Staunen setzen" (Leibniz, Über die Freiheit, II/499).

Notas ao fim do texto


As questões ligadas à liberdade humana sempre constituíram um dos temas centrais e mais difíceis da história do pensamento humano. Quer numa reflexão mais global sobre o destino humano ou mais dirigida à interpretação do sentido da acção humana, a tematização da liberdade nas suas múltiplas dimensões sempre acompanhou a mais aguda reflexão sobre o papel do homem na história. Tal necessidade agudiza-se em tempos de crise. Precisamente aquilo que acontece, a vários níveis, durante os tempos em que Fonseca pensa e escreve sobre este tema: a segunda metade do séc. XVI.

A liberdade aparece frequentemente como um dos vectores fundamentais do programa da Modernidade. Programa que vai ser objecto de análise e muita controvérsia nos escritos mais significativos do pensamento moderno nas áreas da filosofia, teologia e direito. A liberdade transforma-se num tema central da filosofia e da política que vai ficar para sempre associado à Modernidade pela consagração simbólica no ideário da Revolução Francesa. Se é possível associar o nome de um indivíduo a processos históricos tão complexos talvez Lutero seja um dos candidatos mais plausíveis a figura simbólica desse processo. No seu escrito programático Von der Freiheit eines Christenmenschen (1520) proclama a libertação, pela fé, de todos os poderes deste mundo com particular incidência no poder do Papa e de toda a Igreja romana.[1] Mais do que o texto polémico De servo arbitrio (1525), contra Erasmo de Roterdão, é o seu papel no desenvolvimento da Reforma que vai condicionar muita coisa na transição do mundo medieval para os tempos modernos. A própria reacção da Igreja de Roma com a Contra-Reforma dificilmente se explicaria sem o papel de Lutero na Reforma. Não o único mas foi com certeza dos mais importantes e, por isso, figura simbólica do mesmo. É também nessa qualidade que ele comparece no texto de Fonseca quando polemiza com a compreensão da liberdade propugnada pelos Luteranos. Fonseca não podia, tal como muitos dos seus contemporâneos, aceitar a solução de Lutero para os problemas tradicionalmente associados à reflexão sobre o livre arbítrio e a omnipotência e omnisciência divinas. Os escritos de Lutero e de outros teólogos da Reforma vieram recolocar na ordem do dia a discussão de um conjunto de problemas que já contavam com uma longa história. O contexto teológico destas discussões prolonga o quadro conceptual que se foi elaborando no âmbito do pensamento medieval a partir da recepção da filosofia grega.

A compreensão pré-moderna da liberdade tem raízes profundas na filosofia grega e na tradição judaico-cristã. Pedro da Fonseca conhecia, como poucos, essa tradição plural.

As questões suscitadas pela articulação da predestinação e/ou da presciência divinas e da liberdade humana são analisadas por Fonseca num conjunto de seis quaestiones, inseridas a seguir à explanatio de Met. E VI, 2 e ocupa umas densas 116 páginas na edição de Colónia, a mais acessível hoje. O próprio articulado das questões mostra a intenção predominantemente filosófica do texto de Fonseca, independentemente do interesse teológico e institucional que também está manifestamente presente[2].

Antes de entrarmos na análise sumária do texto de Fonseca duas palavras sobre o contexto histórico-crítico da discussão.

A discussão de Pedro da Fonseca, tal como a de muitos dos seus contemporâneos e autores mais antigos dá especial relevo ao célebre texto de Aristóteles De Interpretatione 9. Este texto foi alvo de intenso comentário na Antiguidade, durante a Idade Média e ao longo dos séculos sem esquecer a discussão das últimas décadas. Ontem como hoje não há consenso sobre a interpretação exacta do texto e muito menos sobre as questões teóricas envolvidas. Parece claro que Aristóteles admite que é necessário que haja amanhã uma batalha naval ou que não haja amanhã uma batalha naval ao mesmo tempo que parece negar que se possa falar de necessidade em ambos os casos, no mesmo sentido. Para alguns, o que Aristóteles quer dizer é simplesmente que um enunciado como “haverá amanhã uma batalha naval” não tem qualquer valor de verdade enquanto outros pensam que Aristóteles lhe atribuía um valor de verdade negando apenas que se tratasse de uma verdade necessária. A maioria dos comentadores aceitava que a doutrina defendida por Aristóteles, fosse qual fosse a sua formulação mais rigorosa, fazia parte de uma estratégia argumentativa que tinha como grande meta refutar o determinismo e qualquer forma de fatalismo que pusesse em causa a possibilidade de uma verdadeira deliberação. Se o homem não puder escolher, então, será vão todo o seu esforço, será fútil todo o elogio da liberdade. Na realidade, deixaria de ser possível falar de práxis, de agir humano como algo que distingue os humanos de outros seres naturais. Este tipo de argumentação foi conhecido por Argumento do Preguiçoso e tem sido recentemente analisado em função dos estudos mais recentes sobre a problemática do determinismo no estoicismo antigo. Destes o mais importante é o de Suzanne Bobzien[3] que pretende reduzir o debate entre determinismo e indeterminismo a um episódio limitado no tempo com origem no século II, na época imperial. Partilhamos a convicção daqueles que pensam ser mais correcta, nas suas linhas gerais, a posição tradicional que faz remontar este confronto entre determinismo e indeterminismo à oposição a Demócrito, primeiro defensor conhecido de uma posição tipicamente determinista[4]. Nela participaram, em graus e formas diversas, Platão, Aristóteles, Epicuro tendo alguns estóicos defendido uma posição determinista. Polémica que envolveu filósofos de várias épocas e escolas[5]. No fundo, é este o conjunto de problemas que Fonseca analisa no seu texto. O uso de expressões típicas de controvérsias teológicas e a referência permanente aos atributos divinos não nos devem desviar a atenção do núcleo filosófico dos problemas. Já defendemos em outro lugar e em outras ocasiões a tese de que Pedro da Fonseca tinha uma concepção sistemática da filosofia e sabia, desde o momento em que escreveu o primeiro tomo da sua obra metafísica o lugar exacto em que iria tratar cada um dos temas desenvolvidos ao longo das quaestiones[6]. Recordemos apenas que já no segundo tomo dos CMA (1589), falando das teses de Avicena sobre a criação, Fonseca remete o esclarecimento da problemática da criação e da liberdade divina para os desenvolvimentos no contexto de Metafísica XII. È para este mesmo núcleo de questões que Fonseca remete no texto que estamos a analisar quando fala da raiz da contingência e da omnipotência divina (Fonseca, CMA III, c. 96). É ainda para esse mesmo núcleo que ele remete o tratamento da problemática da providentia que desde a Antiguidade tardia andou associada às questões da liberdade e do destino do homem. Apesar de introduzir aqui a questão de saber se a providência divina “impõe qualquer tipo de necessidade a todos os futuros contingentes", Fonseca não deixa de, por um lado, desenvolver amplamente esta problemática (pp. 132-180)[7] e, por outro, reconhecer que, atendendo complexidade da questão e à quantidade de erros que se foram multiplicando no decurso dos séculos, designadamente no contexto da filosofia pagã, se imporia um desenvolvimento ainda maior (!) deste tema “cujo lugar próprio é no contexto do livro duodécimo onde se discutirá mais longamente sobre a providencia divina”[8]. No texto que nos ocupa, o tema central é, sem sombra de dúvidas a liberdade humana que está no centro da construção teórica de Fonseca a partir da referência fundacional ao texto aristotélico.

Em termos estritamente filosóficos, parece que o principal objectivo de Fonseca passa por assegurar uma correcta interpretação da doutrina aristotélica dos futuros contingentes. A interpretação dos textos do Estagirita, iluminada pela tradição, constituiria a base conceptual mais sólida e adequada para uma defesa da posição teológica tradicional e a refutação das teses heterodoxas de autores como Lutero e Calvino. Apesar de tudo, Fonseca não deixa de apresentar a sua solução para conciliar a presciência divina com a liberdade humana através daquilo a que chamou a ciência dos futuros condicionados, uma posição próxima da defendida por Molina, Suárez e Belarmino no contexto da querela “de auxiliis”. Não entraremos nos detalhes desta discussão. Procuraremos centrar-nos na análise que Fonseca faz dos problemas ligados aos futuros contingentes, a partir de Aristóteles, e como delimita e caracteriza a esfera própria do agir humano e da liberdade que o define. Na medida em que alguns autores recentes defendem a tese de que muitos dos problemas tradicionalmente associados a estas questões tem sua origem numa falta de rigor lógico e muito particularmente daquilo que é designado por “falácia modal”, importa examinar cuidadosamente a argumentação de Fonseca para verificarmos se, porventura, ele foi mais um dos que cometeu este erro lógico[9].

***

Comecemos pela clarificação de algumas noções: possibilidade, necessidade e contingência. A dificuldade em definir e usar com rigor estes conceitos é hoje tão grande como ontem para a generalidade dos autores que escrevem textos de teologia ou filosofia apesar do grande desenvolvimento que a lógica modal conheceu no decurso do século XX.

Fonseca começa por elucidar o termo contingência distinguindo três usos principais:

a) quando designa algo que acontece “praeter intentionem agentium naturalium”;
b) quando designa a contingência “in essendo” daquilo que, pela sua própria natureza, pode ser ou não ser, mesmo que nunca venha a existir. Neste sentido, é “contingente” tudo o que não é “absolutamente necessário” ou impossível. Estamos aqui perante um uso metafísico que não pode ser confundido com a distinção entre o necessário e o possível lógicos.
c) Usa-se ainda para designar eventos contingentes (contingentia in eueniendo), isto é, todos os actos livres (feitos por quem possui liberdade e, por isso mesmo, pode fazer com que algo lhe aconteça ou não). A esta contingência opõe-se a necessidade que caracteriza tudo o que acontece na natureza fora da esfera própria da(s) vontade(s) livre(s)[10].

Não restam dúvidas que é precisamente este terceiro tipo de contingência o mais relevante para as suas análises: aquele que tem que ver com o domínio dos acontecimentos que dependem da acção dos agentes livres.

"Nam luce clarius est dari in nobis, quatenus arbitrii libertate utimur, plurima huiusmodi contingentia; quod usque adeo perspicuum est, ut recte dicat Scotus, id per aliquid quod re ipsa nobis euidentius sit demonstrari non posse; nec certe Aristoteles, Platoue, aut alius magni nominis Philosophus seu Theologus id hactenus a priori demonstrauit; sed tantum ex incommodis quae alioquin sequerentur, coarguunt proteruos, qui ea incommoda esse negare non audent: quorum argumentorum pleni sunt libri et Philosophorum et Patrum, et nostrae potissimum aetatis Theologorum qui contra Lutheranorum insania hac de re scripserunt." (Fonseca, CMA III, L.VI, c.2, q.2, s.1, p.82)

A liberdade de agir é aqui assumida como um dado tão evidente que não se admite sequer a possibilidade de encontrar algo mais evidente que permitisse construir uma dedução da liberdade. Se a liberdade não se pode deduzir nem recusar, então, resta mostrar — a quem a pretender negar — indirectamente, a impossibilidade da sua negação. É precisamente este tipo de estratégia argumentativa que foi seguida por Aristóteles e todos os grandes pensadores da tradição bem como pelos Padres da Igreja, comenta Fonseca. Porém, a multiplicidade de argumentos deste tipo, acumulados ao longo dos séculos e que enche os livros dos teólogos não constitui o alvo primordial da reflexão de Fonseca. O que está em causa é uma compreensão adequada dessa mesma liberdade de modo a superar eventuais dificuldades colocadas pelos defensores de qualquer forma de determinismo ou fatalismo e encontrar uma maneira de articular coerentemente aquilo que pensamos e dizemos acerca da liberdade humana e da providência divina bem como da presciência divina dos futuros contingentes.

"sed illud tantum inferius diligenter curandum, ut per se notam nobis uim liberi arbitrii nostri a calumniis quorundam et Gentilium et Haereticorum uendicemus: et libertatem nostram cum certa et infallibili Dei Opt. Max. futurorum contingentium praescientia et prouidentia cohaerere ostendamus." (sublinhado nosso; Fonseca, CMA III, p.83)

Fonseca admite, contudo, que se alguém pudesse ter um conhecimento quiditativo da essência da nossa alma seria capaz de provar/demonstrar a existência do livre arbítrio como uma das nossas faculdades[11].

Importa salientar aqui o contraste estabelecido por Fonseca, no contexto do terceiro uso de “contingente”, entre os domínios da “natureza” e da “liberdade”. Qual é o princípio que permite escapar à necessidade que regula tudo quanto acontece na natureza? Esse princípio é, claramente, a razão (“ratio”) no exercício efectivo de todas as suas potencialidades. Assim, não basta ser dotado de razão no sentido de ter as capacidades com que geralmente é dotada a espécie humana. É preciso ter capacidade de usar efectivamente esta razão para podermos falar de actos verdadeiramente livres. O texto de Fonseca não deixa margem para dúvidas: as crianças, antes do uso da razão e os loucos não são livres no seu agir apesar de também neles se dar indiferença no seu comportamento[12]. A verdadeira liberdade, aquela que pode responsabilizar-se pelas suas decisões e permite, portanto, que se fale de mérito ou demérito do agente livre “postula o uso da razão” e o “poder de controlar os seus actos” (dominium)[13]. O mesmo tinha já afirmado, alguns anos antes, quando, a propósito da questão de saber se todos os indivíduos são igualmente perfeitos indicava a razão ou “capacidade de inteligência” como o princípio constitutivo da liberdade[14]. O que distingue estes agentes é o facto de não estarem totalmente sujeitos às causas naturais mas serem “agentia per intellectum[15]. Em contraposição, no domínio dos chamados “agentes puramente naturais” a necessidade impera. Por isso, não repugna a Fonseca aceitar, neste sentido e nesta esfera, um certo determinismo e mesmo que se possa falar de “destino”:

"Dicendum igitur, etsi in rebus pure naturalibus dantur contingentia in eueniendo comparatione suarum causarum particularium praecise sumptarum, tamen posito generali ordine causarum omnium a Deo instituto, omnia in eo rerum genere simpliciter et absolute necessitate naturali euenire." (CMA III, L.VI, c.2, q.2, s.4, p. 85, sublinhado nosso)[16].

Fonseca justifica esta posição apelando para um "axioma comum de todos os filósofos" insistindo na idéia de que, suposta esta ordem natural das causas, a conexão entre as causas naturais e os respectivos efeitos é necessária. Esta visão da estrutura causal do mundo e da natureza não está muito longe daquela que configura a compreensão moderna da ciência. O próprio recurso a analogias mecânicas para falar do mundo e da natureza, tão ao gosto de muitos filósofos modernos, não está ausente do texto de Fonseca. Fala, neste contexto de “toda a máquina celeste”[17] e de “mundi machina[18].

Não podemos desenvolver aqui as questões implicadas nesta compreensão da natureza e da liberdade e das aporias a que conduziu, por diversas vias, em muitos autores modernos. Baste assinalar o problema e caracterizar de forma sucinta mas rigorosa a posição de Fonseca nesta matéria[19].

Tomando como fio condutor a questão dos futuros contingentes tal como é lida a partir da polémica em torno do texto De Int. 9 sobre a verdade dos enunciados acerca de acontecimentos futuros poderíamos sintetizar assim a sua tese. Tratando-se de acontecimentos puramente naturais (isto é, que não incluem a esfera específica da liberdade humana) não vê razão para recusar o seu valor de verdade determinado; o mesmo não se poderá dizer dos acontecimentos estritamente vinculados à decisão livre do acção humana mantendo-se, nesse caso, a tese de um valor de verdade indeterminado[20]. Porém, mesmo no caso dos enunciados sobre futuros contingentes em que estão em jogo acontecimentos naturais, o seu valor de verdade só é determinado quando as proposições em apreço dizem algo bem determinado sobre os efeitos de certas causas[21]. A leitura que Fonseca faz do texto do De Interpretatione vai no sentido de que Aristóteles falou, a propósito de um enunciado sobre uma batalha naval futura, de um valor de verdade indeterminado precisamente porque não se tratava de um evento puramente natural mas de algo que dependia da decisão livre de vários intervenientes. Sendo a vontade livre, por sua natureza, indeterminada com respeito a vários actos seus não se pode falar de verdade ou falsidade determinada de proposições que dizem respeito a actos futuros de agentes livres[22] .

Na longa exposição sobre a raiz da contingência e articulação da presciência com a liberdade humana Fonseca vai discutindo as principais interpretações de Tomás de Aquino, Escoto, Ockam, entre outros. Vai insistindo sempre na mesma tese de que a vontade livre tem sempre, em qualquer instante, o poder de se autodeterminar em sentidos opostos[23] . Somos constantemente confrontados com a tese de que a vontade humana goza de autonomia suficiente para se determinar a si mesma em todos os actos livres. Trata-se do princípio mais seguro de toda a praxis humana. Nas palavras de Fonseca, é o próprio Aristóteles quem o confirma claramente no livro nono da Metafísica quando apresenta esta capacidade de autoderminação da vontade em todos os actos livres como a ratio formalis da liberdade humana.

"Est enim Philosophiae moralis firmissimum principium ab Aristotele libro nono huius operis, capite quinto, constitutum uoluntatem nostram se ipsam determinare ad omnes actus liberos, atque in hac re positam esse formaliter totam libertatis rationem; nullamque potentiam que uel per essentiam, uel per participationem rationalis non sit, liberum actum exercere nisi id quod dominatur, hoc est, ipsa uoluntas indifferentiam suam, sibique subiectarum uirium ad alterum oppositorum siue contrarie siue contradictorie determinet. Quod si uoluntas se ipsam et caeteras potentias quouis modo rationales ad actus liberos determinat: ergo non indiget alia determinatione ad eosdem actus, sed tantum ut Deus generali suo influxu sic cum ea concurrat, ut ipsae se actu determinare possit..." (CMA III, L. VI, c. 2, q. 4, s. 6, p. 115)

Com esta citação longa chegamos ao cerne da questão para que aponta o título desta conferência. Ficam muitos argumentos por analisar quer a partir do texto de Fonseca quer da tradição com particular relevo para o texto de Aristóteles. Tínhamos referido, em dado momento, a questão da falácia modal que estaria, segundo alguns, na origem de muitos equívocos em torno da liberdade e dos futuros contingentes. Tanto quanto pudemos observar não cremos que Fonseca tenha cometido tal falácia. Mas não poderemos justificar cabalmente esta afirmação a partir do que dissemos pois não analisamos a complexa solução que Fonseca propõe para compatibilizar a presciência e providência divinas com o livre arbítrio. 

Notas
[1] No seu estilo pouco dado a distinções subtis e que lhe valeu muita incompreensão mesmo dos que lhe estavam mais próximos Lutero sintetiza a sua compreensão da liberdade naquele escrito em duas frases: "Ein Christenmenschen ist ein freier Herr über alle Dinge und niemandem untertan. Ein Christenmenschen ist ein dienstbarer Knecht aller Dinge und jedermann untertan." Luther, Deutsch, Bd. 2, (Göttingen: 1981) p. 251. Cf. Wolfgang Behnk, Contra Liberum Arbitrium – Pro Gratia. Willenslehre und Christuszeugnis bei Luther und Ihre Interpretation durch die neuere Lutherforschung.(Frankfurt:1982) e Martin Bogdahn, Die Rechtfertigungslehre Luthers im Urteil der neueren katholischen Theologie. Möglichkeiten und Tendenzen der katholischen Lutherdeutung in evangelischer Sicht (Göttingen: 1971).
[2] Vejamos a simples enumeração das questões: Q. I - Num entis per accidens possit esse scientia. Q. II - Num in rebus pure naturalibus detur aliquid contingens. Q. III - Quaenam sit radix contingentiae. Q. IV - Num Dei praescientia imponat necessitatem omnibus futuris euentibus. Q. V - Num diuina prouidentia omnibus futuris euentibus necessitatem imponat. Q. VI - Quonam pacto Deus progressus uideatur apud se in actibus aeternae suae praescientia ac prouidentia. CMA III, Coloniae, 1615, pp. 77-193.
[3] Determinism and Freedom in Stoic Philosophy (Oxford: 1998).
[4] Ver, por exemplo, Carlo Natali & Stefano Maso (ed.), La catena delle cause. Determinismo e antideterminismo nel pensiero antico e in quello contemporaneo. (Amsterdam: 2005).
[5] Relembremos aqui alguns textos que documentam este debate até à segunda metade do séc III quando Plotino escreve um tratado Sobre o Destino (En. III, 1): De fato de Cícero (44 AC); o tratado do Pseudo-Plutarco sobre a providência e o destino escrito na primeira metade do séc. II e o tratado sobre o destino de Alexandre de Afrodísia, escrito entre 198 e 209.
[6] A. M. Martins, “A metafísica inacabada de Pedro da Fonseca”, Revista Portuguesa de Filosofia, 47 (1991), pp. 517-533.

[7] É a q. 5 que se desenvolve ao longo de 14 densas secções.
[8] Fonseca, CMA III, p.135.
[9] Uma noção sumária do que está em jogo pode ler-se no artigo de Norman Swartz, “Foreknowledge and Free Will” in The Internet Encyclopedia of Philosophy, de acesso livre na web; para uma justificação teórica mais pormenorizada bem como técnicas de lógica modal de prova da “falácia modal” ver Raymond Bradley & Norman Swartz, Possible Worlds (Indianapolis: Hackett, 1979), pp. 350-365.

[10] Fonseca, CMA III, p. 82. 
[11] “Si quis tamen in hac uita ipsam animae nostrae essentiam quiditaiue cognosceret, non dubium quin per eam priori liberii arbitrii nostrae facultatem demonstrare possit” CMA III, p. 82.
[12] “Pueri ante usum rationis, amentes etiam, immo et belluae in quibusdam earum actibus, censentur agentia pure naturalia, hoc est non libera, quia non agunt ex libero arbitrio; et tamen ex se sunt indifferentia in agendo quia sponte sua agunt hoc uel illud, uel etiam ab agendo abstinent.” CMA III, p. 83.
[13] Fonseca, CMA III, p. 84.
[14] “Quod si arbitrii libertas sumatur pro ea, qua creaturae, rationis siue intelligentiae capaces, sunt liberae a difficultate amplectendi utramuis contradictionis partem propter intelligentiae perfectionem, aut alia de causa; recte quidem colligetur ex inaequali perfectione essentiali individuorum inaequalitas eorum arbitrii libertatis.” CMA II, c. 1090.
[15] CMA III, p. 86.
[16] "Alterum est, si a prima opinione de fato tollatur necessitas humanarum actionum, tantumque res pure naturales, aut etiam ipsi homines ratione solius corporeae constitutionis dicantur subdi caelestibus corporibus, non dubium esse quin ea sententia sit uera". CMA III, L.VI, c.2, q.2, s.4, p.87.
[17] “Ex quibus colligendum est, ea ratione omnia effecta pure naturalia posse ascribi toti caelesti machinae, si omnes orbes caelestes simul accipiantur et causa illa efficiens quae omnia per per intellectum disposuit, nullique orbi caelesti quasi forma naturalis est addicta, illis omnibus immediate uti intelligatur ac si esset omnium generalis forma naturalis, semper eodem modo agens, ut haec inferiora more causarum naturalium administret” CMA III, p. 89.
[18] Ao descrever as diversas ordens dos mundos possíveis para explicar a natureza do saber condicionado de Deus relativamente aos futuros contingentes livres fala assim a propósito do quarto momento da sua reconstrução: “Nam cum Angeli creandi essent simul cum ipsa mundi machina, ut dictum est…” CMA III, p. 183.
[19] Esta concepção da regularidade dos fenómenos naturais pode conduzir a uma série de dificuldades virtualmente insuperáveis sobretudo se se identificar, algo precepitadamente, a necessidade na natureza com aquilo que se pode observar sempre na mesma. O texto de Fonseca fornece um exemplo claro desse tipo de dificuldades no âmbito da astronomia (CMA III, p. 88).
[20] "Ad alterum argumentum dices, cum Aristotele in loco citato neget propositiones siue enuntiationes de futuris contingentibus esse determinate ueras, aut determinate falsas, non id negare propter enuntiationes de rebus pure naturalibus, sed propter eas quae a libero arbitrio pendent, de quibus consultatio et deliberatio haberi solet, ut hoc uel illo modo fiant: hinc enim desumit ille eius rei probationem" (CMA III, p. 90).

[21] “…non dubium est quin propositiones que futurum aliquid pure naturaliter euenturum pronuntiant, determinate uerae sint si significent id quod ex talibus causis simul iunctis euenturum est; falsae autem determinate si significent id quod ex illis euenturum non est”. CMA III, p. 89.
[22] “Nam cum uoluntas sit ex se indeterminata ad quoslibet actus suos, siue elicitos siue imperatos, possitque non soum uelle hoc uel illud; sed etiam se a quocumque actu libero cohibere idque supposito etiam toto uniuersi naturali ordine et quibusuis circunstantiis; efficitur ut si ueritas enuntiationum de futuro ex causis rerum significatarum iudicanda est, nulla determinata ueritas aut falsitas sit in enuntiationibus de futuris uoluntariis...” CMA III, p. 90. Com o seu sentido de rigor interpretativo, Fonseca vai chamar a atenção, um pouco adiante, para o facto de no texto tão discutido (De Int. 9) não se encontrar a expressão determinate como muitos julgam ser esse o caso mas, de facto, ela foi introduzida na discussão, mais tarde, pelos peripatéticos. “Pro solutione harum obiectionum aduertendum est particulam [Determinate] quae tam saepe usurpatur in hac materia non reperiri omnino in capite citato de futuris contingentibus, ubi nonulli credunt uel semel usurpari, sed inducta esse a Peripateticis...” CMA III, p. 92.
[23] “Non est igitur negandum uoluntatem esse liberam in aliquo instanti, pro illo eodem praecise; nec dicendum ( quod idem est) deesse illi potentiam ad oppositos actus in eo exercendos”. CMA III, p. 103.

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