segunda-feira, 24 de setembro de 2007

A Liberdade como Superação da Indiferença

Luiz Alberto Cerqueira (UFRJ)

Notas ao fim do texto


Na incorporação da idéia de modernização[1] ao contexto brasileiro, o problema filosófico central é a questão da liberdade. Após a transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, a abertura dos portos às nações amigas e a elevação do Brasil a Reino Unido foram os traços decisivos para configurar um quadro de emancipação cuja ambiência ganhou vida com a chegada, em 1816, da Missão Artística Francesa. Grande foi o impacto da presença dos artistas franceses no âmbito das idéias, mas a extensão e a profundidade desse impacto só poderão ser corretamente avaliadas se levarmos em conta, primeiramente que, depois da reforma pombalina da universidade, em 1772, a intelectualidade brasileira já descobrira na língua francesa um caminho de acesso à filosofia moderna[2]; em segundo lugar, que os artistas franceses introduziram uma imagem contrária à dos artistas brasileiros, então contemplativos e esteticamente indiferentes[3], de maneira que esses mestres, fiéis ao espírito do Iluminismo francês [4], nos instigaram, com seu exemplo e seu ensino, a pensar um sentido intrínseco da liberdade em termos de superação dessa indiferença.

Queremos mostrar que foi em face de uma concepção da liberdade gerada no âmbito do Iluminismo francês, nomeadamente por Jean-Jacques Rousseau, que Domingos José Gonçalves de Magalhães estabeleceu no Brasil a idéia da liberdade como princípio de conhecimento e de ação moral; outrossim, que foi por intermédio dessa mesma concepção rousseauniana que ele conciliou a experiência filosófica brasileira sob a orientação dos jesuítas e a moderna doutrina cartesiana da liberdade.

I

Toda a filosofia de Rousseau (1712-1778) gira em torno à sua concepção do homem natural e à sua preocupação em refutar a doutrina congênere de Thomas Hobbes (1588-1679). Contrariamente a este, ele não descreve o puro estado de natureza como uma guerra de todos contra todos, mas sim como um estado em que cada qual se encontra separado por completo dos demais que, por sua vez, lhe são indiferentes. Segundo esta concepção, não há por natureza vínculo moral nem sentimental entre os indivíduos; nenhuma idéia de dever, nenhum movimento de simpatia que estabeleça uma associação entre eles: cada um existe para si mesmo e busca tão somente o que é necessário para a conservação da própria vida:

"Hobbes pretende que o homem é naturalmente intrépido e só procura atacar e combater [...] nada é tão tímido quanto o homem no estado de natureza [...] ele está sempre trêmulo e pronto para fugir ao menor ruído que o impressione, ao menor movimento que perceba. Isso pode ocorrer também em relação aos objetos que não conhece, e não duvido que se amedronte com todas as novas situações em que se encontre, quando não pode distinguir o bem e o mal que delas deve esperar, ou quando não pode comparar suas forças com os perigos que tem de correr; circunstâncias essas raras no estado de natureza, no qual todas as coisas progridem de uma maneira uniforme, e no qual nada está sujeito a mudanças bruscas e contínuas [...] Sozinho, ocioso, e sempre próximo do perigo [...] deve gostar de dormir e ter o sono leve como o dos animais que, pensando pouco, dormem todo o tempo em que não estão pensando. Sendo a própria conservação quase o seu único cuidado, suas faculdades mais excitadas devem ser aquelas cujo único objetivo é o ataque e a defesa [...] os órgãos que só se aperfeiçoam pela indolência e pela sensualidade devem permanecer em estado de grosseria [...] ele terá o tato e o paladar de uma rudeza extrema, sendo de alta sutileza a visão, a audição e o olfato." (ROUSSEAU, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, Primeira Parte)

Segundo Rousseau, o defeito da doutrina de Hobbes reside no fato de que o autor do Leviatã atribui à natureza humana não este egoísmo pacífico, e sim um egoísmo agressivo. Ademais, acrescenta, se Hobbes viu nas forças instintivas, como a sensualidade, uma evidência da limitação do poder humano, ele todavia deixou de perceber que tal condição, que ele viu como efeito do pouco uso da razão, também é a causa que impede que dela abusemos para a criação sem limite das novas necessidade que fazem do homem lobo para o próprio homem, justamente porque pelo corpo somos chamados constantemente para a vida prática:

"[Hobbes] deveria dizer que, sendo o estado de natureza aquele em que o cuidado com a nossa conservação é menos prejudicial à conservação alheia era o mais apropriado para a paz e o mais conveniente ao gênero humano. Ele diz justamente o contrário, por ter introduzido impropriamente [...] a necessidade de satisfazer uma imensa quantidade de paixões que são obra da sociedade e tornam necessárias as leis [...] Hobbes não viu que a mesma causa que impede os selvagens de usar da razão [...] impede-os ao mesmo tempo de abusar de suas faculdades." (ROUSSEAU, ibidem)

Para Rousseau, o impulso à pilhagem e à dominação violenta é estranho ao estado de natureza, e só nasce a partir do momento em que o indivíduo passa a viver em sociedade e nela conhece todos os desejos artificiais que o degeneram. Portanto, o fator dominante na constituição psíquica do homem natural não seria a opressão violenta dos seus semelhantes, senão a indiferença na vontade:

"A natureza manda em todos os animais, e o bicho obedece. O homem sente a mesma impressão, mas se reconhece livre para aquiescer ou para resistir, sendo sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma [...] Querer e não querer, desejar e temer, serão as primeiras e quase únicas operações de sua alma até que novas circunstâncias nele provoquem novos desenvolvimentos [...] só buscamos conhecer por desejarmos usufruir, não sendo possível conceber por que aquele que não tivesse desejos nem temores se daria ao trabalho de raciocinar [...] quem não verá que tudo parece afastar do homem selvagem a tentação e os meios de deixar de sê-lo? [...] Suas módicas necessidades encontram-se tão facilmente ao alcance da mão, e ele está tão longe do grau de conhecimentos necessário para desejar adquirir outros maiores, que não pode ter nem previdência, nem curiosidade. O espetáculo da natureza, à força de se lhe tornar familiar, torna-se-lhe indiferente (indifférent)." (ROUSSEAU, ibidem)

Mesmo reconhecendo que o homem natural é capaz de simpatia, Rousseau afirma que esta não tem suas raízes num instinto social inato, senão no dom da fantasia. Isto quer dizer: o homem possui por natureza a capacidade de colocar-se no ser e na sensibilidade de outro, e esta faculdade de simpatizar lhe permite sentir a dor alheia como sendo, até certo ponto, própria. E semelhante forma de compaixão, que supera o mero sentimento de si, poderia ser sua finalidade, sua meta enfim, mas nunca poderia constituir-se em ponto de partida (ROUSSEAU, ibidem). De maneira que no estado de natureza não poderia existir uma harmonia entre o interesse próprio e o interesse de todos, pois o interesse de cada um jamais coincidiria com o interesse geral, pelo contrário, se excluiriam: “o mais forte nunca é bastante forte para ser sempre o senhor, se não transformar sua força em direito e a obediência em dever” (ROUSSEAU, O contrato social I, III). Por isto, observa Rousseau, nas primeiras sociedades, uma vez que não são constituídas conscientemente pela vontade, senão como o resultado fortuito das forças a que o homem sucumbe ao invés de dominar, as leis sociais não são mais que um jugo que cada um trata de impor ao outro, e não a si mesmo. E foi esta, segundo ele, a forma de contrato que, de início, prevaleceu historicamente nas sociedades; forma que encerra um vínculo puramente jurídico, mas sem qualquer vínculo moral genuíno. Sendo assim, o contrato social seria nulo, contraditório e irracional, pois ao invés vez de reunir internamente as vontades individuais, forçá-las-ia exteriormente à união empregando meios físicos de poder. Semelhante vínculo teria apenas um caráter fático, porém sem respaldo moral e, neste sentido, sem valor, pois o valor da união consistiria numa soberania à qual o indivíduo não só está de fato obrigado, como também por ela ele mesmo se obriga. Mas como seria possível tal obrigação, considerando-se a indiferença na vontade do homem natural? Segundo Rousseau, “enquanto [os homens] se aplicaram apenas a obras que um homem podia fazer sozinho [...] viveram tão livres, sadios, bons e felizes quanto o poderiam ser por sua natureza e continuaram a usufruir entre si as doçuras de um relacionamento independente” (ROUSSEAU, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, Primeira Parte). Considerando-se, porém, a história da humanidade, há que destacar, segundo ele, para além da indiferença na vontade, “outra qualidade muito específica que distingue [os homens], e sobre a qual não pode haver contestação: a faculdade de aperfeiçoar-se; faculdade essa que [...] desenvolve sucessivamente todas as demais” (ROUSSEAU, ibidem). Com base nesta capacidade humana de aperfeiçoar-se, eis, portanto, a forma de soberania que pretende assegurar-nos Rousseau n’O contrato social: quando os sujeitos que se obrigam reciprocamente no contrato permanecem, apesar desta obrigação, em seu estado de indiferença, ou quando os indivíduos instituem um poder soberano ao qual se submetem indiferentemente, dessa reunião não resulta nenhuma unidade autêntica, porque esta não é possível mediante coação, senão pela liberdade. Tal liberdade, porém, como vemos não significa a exclusão da obrigação, pelo contrário, significa a sua rigorosa necessidade; nem esta obrigação é a de uma vontade individual submetida a outra. Trata-se de uma vontade individual que, contando com o uso da razão, vai ao encontro de uma vontade geral:

"O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto deseja e pode alcançar; o que com ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui [...] poder-se-ia acrescentar à aquisição do estado civil a liberdade moral, a única que torna o homem verdadeiramente senhor de si, porquanto o impulso do mero apetite é escravidão, e a obediência à lei que se prescreveu a si mesmo é liberdade." (ROUSSEAU, O contrato social I, VIII) "Cada qual, desvinculando seu interesse do interesse comum, vê que não pode separá-los por inteiro, porém sua parte do mal público parece-lhe insignificante quando comparado ao bem exclusivo de que pretende apropriar-se." (ROUSSEAU, idem IV, I)

Este tipo de contrato é o único que, segundo Rousseau, possui não só uma força coercitiva física, mas também moralmente obrigatória. Desta conexão surge a estrita correlação que, para ele, existe entre os conceitos autênticos de liberdade e de lei: liberdade então quer dizer a vinculação a uma lei rigorosa e inviolável que cada indivíduo estabelece na medida em que ele mesmo, por vontade própria, se obriga à vontade geral. O que constitui a essência da liberdade nada tem a ver com desvio da lei ou ruptura com ela, senão com a obrigação. Por isso, Rousseau entende que não se trata de emancipar os indivíduos, de sorte que escapem à forma de comunidade; trata-se de encontrar a forma de comunidade que proteja cada um, de maneira que o indivíduo, ao unir-se aos demais, ele efetivamente obedece à própria vontade. Para concluir esta breve apresentação do sentido da liberdade na doutrina de Rousseau, o fato é que somente pela renúncia definitiva à indiferença, enquanto primitive indépendance que rege sua vontade natural, o homem usa de sua liberdade como fator de produção e realização no mundo da vida.

II

No Brasil, a idéia da liberdade como princípio ontológico aparece pela primeira vez com o Padre Antonio Vieira (1608-1697), ainda no âmbito de uma tradição filosófica de caráter escolástico e contemplativo. Da sua preocupação teórica quanto à causa da ineficácia dos sermões[5], cujo fim último é o “conhecimento do Criador” [6], podemos deduzir a seguinte questão: Como pode o homem conceber o Criador, que é imaterial, “actus purus [7], e seguir a sua lei, sem o conhecimento de si mesmo como alma, e não como corpo? Daí a necessidade do conhecimento de si: “neste mundo racional do homem, o primeiro móbil de todas as nossas ações é o conhecimento de nós mesmos” (VIEIRA, As cinco pedras da funda de Davi). Ora, uma vez considerando o homem natural constituído de corpo e alma, é pela visão da alma em separado do próprio corpo que o homem verdadeiramente se conhece à imagem e semelhança do Criador:

"Enquanto o homem não sai do corpo, ignora-se, e só quando sai dele se conhece [...] para que o homem se conheça, há de entrar em si mesmo; e este sair de si, é entrar em si; porque é sair do exterior do homem, que é o corpo, e entrar e penetrar o interior dele, que é a alma [...] quem vê o corpo, vê um animal; quem vê a alma, vê ao homem [...] Quando S. Paulo (e eu com ele) chama homem à alma, não fala da parte do homem, senão de todo o homem; mas não do homem físico e natural, senão do homem moral, a quem ele queria instruir e formar." (VIEIRA, idem)

Logo, não é em seu estado natural que o homem alcança a eficácia em suas ações. Pelo contrário, quando segue a natureza, é pelo corpo, e pelo apetite sensitivo movendo a vontade, que o homem se engana, erra e peca: “Almas, almas, vivei como almas: se conheceis que a alma é racional, governe a razão, e não o apetite” (VIEIRA, idem). Desse modo, chamando a atenção do indivíduo para a necessidade do governo de si por negação da vontade ilimitada, que é o estado em que ela se encontra no homem natural, Vieira demonstra uma perfeita sintonia com Tomás de Aquino, e mais ao fundo com Agostinho, quando entende que toda a eficácia nas próprias ações implica o uso teórico da vontade[8]. E isto quer dizer o seguinte: que da vontade exclusivamente depende o querer e o não querer. Mas como pode tornar-se eficaz uma vontade contingente, que pode querer e não querer? A resposta é a seguinte: a vontade se move por si segundo o modo da necessidade se, e na medida em que, ela é indiferente à possibilidade de escolha entre os dois contrários. Já não se trata agora, evidentemente, da necessidade material do apetite, e sim da necessidade do dever fundada na obrigação. Desse modo, entretanto, quando o indivíduo obedece à lei, ele não escolhe, ele obedece cegamente. Eis como explicamos em Vieira o sentido da obrigação: em face da lei de Deus, o indivíduo reconhece, pela razão, a universalidade da lei como sendo esta a condição de possibilidade da vida em comunidade, da vida civilizada; de maneira que a obediência do indivíduo não se faz pela força, senão pela própria vontade, sobretudo porque, tendo experimentado os benefícios da lei de Deus, como o amor e a compaixão, ele tem fé e obedece cegamente à lei de Deus pelo bem que recebe[9]: “Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos, e não havemos de querer o que elas dizem?” (VIEIRA, Sermão da sexagésima, IX). Desse modo, a obrigação se converte em essência do homem na vida em comunidade; e enquanto o exercício da obrigação, o ofício ou dever, o trabalho enfim, constitui-se na própria natureza da pessoa como participante na obra de criação da vida em comum. Considerando o modo do ser pelo qual a vontade se move por si, inteiramente indiferente a querer e não querer por obrigação à lei de Deus, não é pelo seu ser enquanto determinação natural que o homem se torna uma força poderosa de realização sobre as próprias ações, senão pelo seu dever-ser:

"Bom era que nos igualáramos todos: mas como se podem igualar extremos que têm a essência na mesma desigualdade? Quem compõe os três estados do Reino, é a desigualdade das pessoas. Pois como se hão de igualar os três estados, se são estados porque são desiguais? Como? [...] Não é necessária Filosofia para saber que um indivíduo não pode ter duas essências. Pois se os Apóstolos eram homens, se eram indivíduos da natureza humana, como lhes diz Cristo que são sal: Vos estis sal? [...] Quis-nos ensinar Cristo Senhor nosso, que pelas conveniências do bem comum se hão de transformar os homens, e que hão de deixar de ser o que são por natureza, para serem o que devem ser por obrigação [...] porque o ofício há-se de transformar em natureza, a obrigação há-se de converter em essência, e devem os homens deixar o que são, para chegarem a ser o que devem. Assim o fazia o Batista, que, perguntado quem era, respondeu: Ego sum vox: Eu sou uma voz. Calou o nome da pessoa, e disse o nome do ofício; porque cada um é o que deve ser, e senão, não é o que deve." (VIEIRA, Sermão de Santo Antonio, de 1642)

A indiferença na vontade aparece claramente como expressão de um sentido contemplativo da liberdade quando, em pregação à Irmandade dos Pretos de um engenho na Bahia, Vieira compara a situação dos escravos ao martírio de Cristo. Sua doutrina é a seguinte: assim como é pelo corpo que o homem padece o que não quer, é pelo conhecimento de si como uma vontade indiferente a querer e não querer, quando o indivíduo se torna capaz de obrigar-se por si às determinações universais da lei de Deus, que nossas ações adquirem valor e podem dar-nos o mérito dos benefícios: “Todos querem [...] ser glorificados com Cristo; mas não querem padecer, nem ter parte na Cruz com Cristo” (VIEIRA, Sermão XIV, da série Maria Rosa Mística). Dessa forma, Vieira ensinava que, embora escravizado e vivendo em promiscuidade, numa realidade “que é uma semelhança de inferno”, o negro africano poderia encontrar valor em seu trabalho e dignidade em sua condição desde que, comparativamente a Cristo, ele contemplasse a si mesmo como sendo indiferente ao mistério da dor enquanto uma determinação da natureza corpórea: “Bem-aventurados vós se soubéreis conhecer a fortuna do vosso estado, e com a conformidade e imitação de tão alta e divina semelhança aproveitar e santificar o trabalho!” (VIEIRA, ibidem). E assim, conhecendo a si mesmo, não mais como vítima da natureza, senão como criatura de Deus, e como alguém que assume o seu ofício, o escravo torna-se um ente moral, segundo a forma de sua participação no mundo da vida: livre, portanto, para conformar-se e, acima de tudo, para transformar-se em protagonista do drama da humanidade, convertendo assim, pela virtude, “o inferno em paraíso”:

Quis Deus que nascessem à Fé [os negros africanos no Brasil] debaixo do signo da sua Paixão, e que ela, assim como lhe havia de ser o exemplo para a paciência, lhe fosse também o alívio para o trabalho [...] Que tem que ver a liberdade de uma ave com penas e asas para voar, com a prisão do que se não pode bulir dali por meses e anos, e talvez por toda a vida? [...] se não só de dia, mas de noite vos virdes atados a essas caldeiras com uma forte cadeia, que só vos deixe livres as mãos para o trabalho, e não os pés para dar um passo; nem por isso vos desconsoleis e desanimeis; orai e meditai os mistérios dolorosos, acompanhando a Cristo [...] Oh quem me dera asas como de pombas para voar e descansar! E estas são as mesmas que eu vos prometo no meio dessa miséria [...] porque é tal a virtude dos mistérios dolorosos da Paixão de Cristo para os que orando os meditam [...] que o ferro se lhes converte em prata, o cobre em ouro, a prisão em liberdade, o trabalho em descanso, o inferno em paraíso, e os mesmos homens, posto que pretos, em Anjos." (VIEIRA, ibidem)

III

Quem primeiramente distinguiu na atitude contemplativa o principal entrave à modernização cultural brasileira foi Domingos José Gonçalves de Magalhães (1811-1882). Sua visão filosófica do problema se revela na preocupação em definir um conceito intrínseco da liberdade, inerente à consciência de si, que justificasse o empenho de atender às diferentes, e muitas vezes contrárias, manifestações da filosofia moderna, mas sem prejuízo da própria experiência histórico-cultural. Para sermos mais precisos, vemos que nele é evidente a percepção da condicionalidade histórica do sujeito pensante, quando nos chama a atenção para a mudança de método na maneira de pensar introduzida pela filosofia moderna, da seguinte forma: no contexto do ensino filosófico brasileiro subordinado à teologia, aprendemos que a alma racional, enquanto objeto de conhecimento, é o efeito da conversão[10], exatamente porque, segundo Vieira, “assim como Deus nesta vida se conhece por fé, assim se conhece por fé também a alma” (VIEIRA, As cinco pedras da funda de Davi, V); no contexto do Iluminismo, pelo contrário, a alma racional é a causa de todo o objeto de conhecimento:

"Custa-nos muito no meio, ou no fim da vida, renovar as nossas idéias, como o mudar de linguagem, e reformar os nossos costumes. Assim, não há verdade em ciência alguma, não há fato novo, achado pelo trabalho assíduo de alguns espíritos, que não fosse, e não seja combatido por mil juízos antecipados [...] não podendo conciliar fatos que nos parecem contrários ao que sabemos, negamos hoje o que afirmamos ontem, damos agora como causa o que antes reconhecemos ser efeito [...] Não parecerá agora extravagante pensamento se dissermos que o espírito não está no corpo e no espaço, mas sim que o corpo e o espaço estão intelectualmente no espírito." (MAGALHÃES, Fatos do espírito humano, XV)

De fato, posicionando-se em relação ao contexto do Iluminismo francês, Magalhães abre uma via de acesso aos fundamentos da filosofia moderna. Isto é evidente, quando nos lembramos da afirmação cartesiana de que “propriamente falando, só concebemos os corpos pela faculdade de entender em nós existente, e não pela imaginação nem pelos sentidos, e que não os conhecemos pelo fato de os ver ou de tocá-los, mas somente por os conceber pelo pensamento” (DESCARTES, Meditações II, 18). Ressaltemos, entretanto, que em Magalhães o acesso aos mestres da filosofia moderna parece orientado pela necessidade a priori de corrigir historicamente a visão dos problemas como problemas filosóficos. Neste sentido, é essencial o diálogo com o passado. E assim ele preserva a concepção do homem defendida por Vieira como uma vontade que se move por si, porém dando um passo adiante, isto é, já não concebe a ação moral pela obrigação como uma obediência cega, senão pela liberdade de arbítrio: “o espírito humano não é um simples pensamento da inteligência eterna que, sem conhecer-se, se mova por determinações necessárias [...] O espírito tem consciência de si; na sua inteligência se refletem os pensamentos de Deus; ele procura compreendê-los, delibera, e obra por si mesmo” (MAGALHÃES, Fatos do espírito humano, 2004, p. 353).

O pressuposto da obrigação como obediência cega fez com que Magalhães remontasse ao contexto do Humanismo, onde se levanta a questão se a presciência divina é incompatível com a liberdade humana. No século XVI, os teólogos e filósofos jesuítas, em resposta às concepções de Lutero e Calvino, conciliaram a presciência divina e a liberdade de arbítrio. Diz-se livre, define Luis de Molina, “aquele agente que, postos todos os requisitos para agir, pode agir e não agir, ou agir de maneira que possa agir também ao contrário”[11] No século seguinte, Descartes definirá com precisão este sentido intrínseco da liberdade, a qual, “consiste somente em que podemos fazer uma coisa ou deixar de fazer (isto é, afirmar ou negar, perseguir ou fugir) ou, antes, somente em que, para afirmar ou negar, perseguir ou fugir às coisas que o entendimento nos propõe, agimos de tal maneira que não sentimos absolutamente que alguma força exterior nos obrigue a tanto” (Meditação Quarta, 9).

Ao defender a tese de que a liberdade de arbítrio, caracterizada pela contingência, não é inconciliável com a necessidade da lei, Gonçalves de Magalhães nos permite vislumbrar as duas direções de uma mesma linha de pesquisa que, ao fundo, nos remete definitivamente ao contexto do Humanismo; e à frente nos indica a consciência como sendo um domínio absoluto em oposição ao absoluto da existência em si, de maneira que a liberdade enquanto propriedade da vontade não é possível sem a necessidade a que estamos submetidos pelo próprio corpo, em termos de luta da liberdade contra a necessidade:

"A liberdade de muitos só era possível com algum elemento fatal, que os reunisse, e os harmonizasse; e a coexistência da liberdade e da necessidade prova que tudo foi previsto e ordenado com maior sabedoria que a ordem de todo esse imenso universo. E como de fato existe esta harmonia da liberdade e da necessidade, nenhuma dificuldade temos de admitir o livre-arbítrio, e a presciência divina. Este grande problema da conciliação do livre-arbítrio e da presciência divina, tão discutido pelos maiores teólogos e filósofos cristãos [...] Para o mérito do homem, para a sua virtude, basta a intenção com que ele livremente faz o que deve fazer, ou se opõe, sem que possa subtrair-se à necessidade: e essa liberdade de resolução, e o seu mérito, são tanto maiores quanto ele ignora o que há de acontecer, e se atribui a determinação e a execução [...] Livres somos nos nossos esforços, e o que há de ser acontece, não por ter sido previsto e determinado, mas como uma conseqüência natural da luta da liberdade contra a necessidade." (MAGALHÃES, idem, pp. 357-359)

A tarefa filosófica de Gonçalves de Magalhães foi proclamar o absurdo de uma espiritualidade contemplativa ante a necessidade de reforma da cultura e da sociedade pós-Independência[12]. Neste aspecto, ele reflete claramente o influxo da “filosofia das luzes”, particularmente do Iluminismo francês de fundo cristão, a exemplo de Rousseau. São várias as passagens, como, por exemplo, quando afirma que Deus nos criou para saber e poder, referindo-se então à capacidade humana de aperfeiçoar-se pela “faculdade de inventar, testemunhada pelas ciências progressivas” (MAGALHÃES, idem, p. 354); ou ainda, quando argumenta, de maneira muito semelhante ao Discurso rousseauniano, que “o corpo não nos foi dado como uma condição de saber e de querer, mas como uma sujeição que coarctasse esse poder livre, de que abusaríamos, chamando-nos à vida prática” (MAGALHÃES, ibidem). Daí o seu reparo aos contemplativos e aos defensores do “bom selvagem”:

"Podia Deus sem dúvida criar uma sociedade de espíritos puros, não obrigados a coisa alguma, não sujeitos à menor dor, seres angélicos que vivessem em uma eterna bem-aventurança, só contemplando as maravilhas do seu criador. Mas qual seria o mérito desses espíritos para tanta ventura? Necessita Deus de admiradores inúteis?" (MAGALHÃES, Fatos do espírito humano, p. 355). 

"Caldas [Antonio Pereira de Souza Caldas, 1762-1814], o primeiro dos nossos líricos, tão cheio de saber, e que pudera ter sido o reformador da nossa Poesia, nos seus primores d’arte, nem sempre se apoderou desta idéia [...] e quando ele é original causa mesmo dó que cantasse o homem selvagem de preferência ao civilizado, como se aquele a este superasse, como se a civilização não fosse obra de Deus, à que era o homem chamado pela força da inteligência, com que a Providência dos demais seres o distinguira!" (MAGALHÃES, Suspiros poéticos e saudades, Lede, 1836)

Não obstante as devidas diferenças, a exigência de liberdade em Gonçalves de Magalhães encontra-se em perfeita sintonia com o pensamento de Descartes, quando este afirma: “para que eu seja livre, não é necessário que eu seja indiferente na escolha de um ou de outro dos dois contrários; mas antes, quanto mais eu pender para um, seja porque eu conheça evidentemente que o bom e o verdadeiro aí se encontrem, seja porque Deus disponha assim o interior do meu pensamento, tanto mais livremente o escolherei e o abraçarei [...] De maneira que esta indiferença que sinto, quando não sou absolutamente impelido para um lado mais do que para outro pelo peso de alguma razão, é o mais baixo grau da liberdade, e faz parecer mais uma carência no conhecimento do que uma perfeição na vontade” (DESCARTES, Meditações, IV). 

Notas
[1] “Moderno” exprime muitos sentidos. Em geral, é usado para distinguir o mais recente, a novidade, o que irrompe e anuncia uma mudança das concepções tradicionais. Por este aspecto, a vanguarda, ainda que passageira em sua adesão ao novo, ou em sua proposta de inovação, costuma ser qualificada de “moderna”. Em seu sentido filosófico, porém, significa tanto uma determinada época da história da humanidade, que sucede a Idade Média, como a forma da vida que lhe é inerente. É neste último sentido que usaremos o termo “moderno” e seus cognatos.
[2] Representativo dessa fase de aproximação ao espírito moderno é o nome de Antonio Pereira de Souza Caldas (Rio de Janeiro, 1762-1814). Ainda estudante de direito em Coimbra, Souza Caldas publicou poemas profanos, sendo detido e condenado pelo Santo Ofício como “herege, naturalista, deísta e blasfemo” (SARAIVA, História da literatura portuguesa, p. 685), e submetido a exame de consciência e reeducação no convento oratoriano de Rilhafoles; mais tarde, recebido pelo papa Pio VI em Roma, aí se ordenou sacerdote. Em sua volta definitiva para o Brasil (1808), notabilizou-se na corte como orador sacro e, segundo consta, ainda teria publicado duas cartas em defesa da liberdade de opinião (SARAIVA, idem, p. 686). Autor de extensa obra literária, famosa é sua Ode ao Homem Selvagem (1784), sob influência da idéia do homem natural de Jean-Jacques Rousseau. Do seu legado, ainda são acessíveis: Breves meditações sobre as máximas eternas, Poesias líricas, Obras poéticas (Paris, 1820-21). Outros nomes representativos são os de D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho (1742-1831), fundador do Seminário de Olinda, e José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838). Temos também o famoso testemunho de Frei Francisco do Monte Alverne (1784-1858), no qual ele se refere à necessidade histórica de o intelectual brasileiro emancipar o próprio pensamento, observando que sabia, “com Montesquieu [Défense de l’Esprit des lois], ser impossível realizar alguma coisa de importante, desde que fosse mister levar à balança nossos pensamentos” (MONTE ALVERNE, Obras oratórias, Preliminar, p. IX).
[3] Vale considerar o testemunho daquele que fez a reforma da literatura brasileira pela introdução do romantismo: “Até aqui, como só se procurava fazer uma obra segundo a Arte, imitar era o meio indicado; fingida era a inspiração, e artificial o entusiasmo. Desprezavam os poetas a consideração se a Mitologia podia, ou não, influir sobre nós; contanto que dissessem que as Musas do Hélicon os inspiravam, que Febo guiava seu carro puxado pela quadriga, que a Aurora abria as portas do Oriente com seus dedos de rosas, e outras tais e quejandas imagens tão usadas, cuidavam que tudo tinham feito, e que com Homero emparelhavam; como se pudesse parecer belo quem achasse algum velho manto grego, e com ele se cobrisse; antigos e safados ornamentos, de que todos se servem, a ninguém honram.” (MAGALHÃES, D. J. Gonçalves de. Suspiros poéticos e saudades, Lede. Paris, 1836.)
[4] Refiro-me aqui, sobretudo, às teses políticas defendidas por Montesquieu e Rousseau, e à idéia de progresso em Voltaire. Observe-se que foi por exclusão ideológica, após o fim da política iluminista de Napoleão e o advento da Restauração, que eles se encontraram, em sua maioria, desempregados, e por esta razão principal firmaram contrato para trabalhar junto à corte portuguesa no Brasil.
[5] “Antigamente convertia-se o mundo, hoje por que se não converte ninguém?” Cf. VIEIRA, Sermão da sexagésima.
[6] Como se sabe, a tradição filosófica subjacente à educação brasileira durante o período colonial é o aristotelismo de origem escolástica, cujo intérprete privilegiado de Aristóteles é Tomás de Aquino. O ideal contemplativo do saber, proposto no método dos jesuítas, a Ratio Studiorum, corresponde ao uso da razão para efeito de “conhecimento do Criador”, cuja imagem renovada no espírito humano evitaria o erro e o pecado. Isto é o que se verifica nas Regras do Professor de Filosofia, onde se lê logo no início:“1. Fim - Como as artes e as ciências da natureza preparam a inteligência para a teologia e contribuem para a sua perfeita compreensão e aplicação prática, e por si mesmas concorrem para o mesmo fim, o professor, procurando sinceramente em todas as coisas a honra e a glória de Deus, trate-as com a diligência devida, de modo que prepare os seus alunos, sobretudo os nossos, para a teologia e acima de tudo os estimule ao conhecimento do Criador”. Cf. Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Jesu.
[7] Sendo o Criador o princípio ativo em função do qual toda a matéria em sua potencialidade passiva pode ser algo ou deixar de sê-lo, tal princípio ativo não pode conter matéria, sendo, portanto, imaterial (TOMÁS DE AQUINO, Summa contra gentiles I, 17).
[8] Segundo Tomás de Aquino, “é manifesto que, pela paixão do apetite sensitivo, o homem é imutado para alguma disposição. Por onde, quando levado por uma paixão, parece-lhe conveniente o que lhe não pareceria se dela estivesse isento; assim, o que parece bom ao irado não parece ao calmo. Deste modo, pois, quanto ao objeto, o apetite sensitivo move a vontade” (Summa theologiae I-II, q. IX, a. II); mas, ao contrário, “a vontade é senhora dos seus atos e dela depende o querer e o não querer [...] em razão do fim, objeto da vontade, a ela pertence mover as outras potências [...] Ora, é manifesto que o intelecto, conhecendo o princípio, reduz-se da potência ao ato, quanto ao conhecimento das conclusões, e deste modo a si mesmo se move. E semelhantemente, a vontade, querendo o fim, move-se a si mesma a querer os meios” (idem, a. III). Antes, porém, de Tomás de Aquino, Agostinho afirmara que “pelo mesmo modo como [...] a mesma razão se inclui entre os objetos que conhecemos pela razão [...] também podemos usar da mesma vontade livre por meio dela mesma. E assim, de algum modo usa de si mesma a vontade que usa das outras coisas, como se conhece a si mesma a razão, que também conhece as outras coisas (O livre arbítrio II, XIX).
[9] Tal concepção remonta ao tratado da Virtuosa benfeitoria (1430), do Infante D. Pedro, para quem o meio eficaz de promover a harmonia social é uma política governamental de concessão de benefícios, em virtude dos quais os súditos obedecem ao poder instituído “não como servos em constrangida sujeição, mas segundo homens livres em obediência desejosa” (cf. ed. cit. p. 567).
[10] Que coisa é a conversão de uma alma senão entrar um homem dentro em si, e ver-se a si mesmo? (VIEIRA, Sermão da sexagésima, III);
[11] “Quo pacto illud agens liberum dicitur quod positis omnibus requisitis ad agendum potest agere et non agere aut ita agere unum ut contrarium etiam agere possit.” Cf. Luis de Molina, Concordia, ed. cit., p. 14.
[12] “Toca ao nosso século restaurar as ruínas e reparar as faltas dos passados séculos. Cada nação livre reconhece hoje mais que nunca a necessidade de marchar. Marchar para uma nação é engrandecer-se moralmente, é desenvolver todos os elementos da civilização [...] O povo que se olvida a si mesmo, que ignora o seu passado, como o seu presente, como tudo o que nele se passa, esse povo ficará sempre na imobilidade [...] Nada de exclusão, nada de desprezo. Tudo o que pode concorrer para o esclarecimento da história geral dos progressos da humanidade merecer deve a nossa consideração. Jamais uma nação poderá prever seu futuro, se não conhece o que ela é comparativamente com o que ela foi. Estudar o passado é ver melhor o presente, é saber como se deve marchar para um futuro mais brilhante.” Cf. Discurso sobre a história da literatura do Brasil (1836), II.

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